quarta-feira, 3 de março de 2010

Barbárie sem fim

Nada menos que 97% das egípcias entre 15 e 47 anos sofreram mutilação genital. Na África, são 92,5 milhões de mulheres acima dos 10 anos que tiveram o clitoris ou também os pequenos lábios ou mais os grandes lábios extirpados por uma faca, sem anestesia, e depois o estrago foi costurado com agulha. Diariamente, 8 mil meninas passam por essa tortura lá e em outros países do Oriente Médio, da Ásia e Europa. Por que é tão difícil acabar com esse crime bárbaro?


por Iara Biderman

A mutilação genital é um dos crimes mais pavorosos que se pode cometer contra a mulher. O número de mortes causadas por essa prática tribal ancestral é incerto, mas estima-se que, nas regiões onde há escassez de antibióticos, um terço das meninas morra imediatamente em decorrência dela e 100 mil adolescentes morram a cada ano por complicações de parto associadas à mutilação. Mesmo quando não culmina em morte, ela resulta em vidas estraçalhadas. A circuncisão feminina traz dores inimagináveis, prejudica a fertilidade, tira da mulher a possibilidade de ter prazer sexual. Embora alguns países, como o Egito, venham tentando frear a mutilação feminine com leis duras e multas pesadas em dinheiro, os avanços ainda são tímidos, segundo relatórios do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e da Organização Mundial da Saúde (OMS).

O estudo Mulheres e Saúde: Evidências de Hoje, Agenda de Amanhã, publicado no ano passado pela OMS, traz os números mais recentes. A estimativa é de que, na África, 92,5 milhões de mulheres e meninas com mais de 10 anos sofrem as sequelas da mutilação – entre elas, 12,5 milhões têm entre 10 e 14 anos. De acordo com a publicação, cerca de 3 milhões de meninas continuam a ser mutiladas anualmente e a redução de casos foi muito pequena nos últimos anos. Os dados também mostram aumento do número de procedimentos feitos por profissionais de saúde, diminuição da idade em que as meninas são submetidas ao corte genital e um crescimento significativo de meninas submetidas à mutilação antes dos 5 anos. Os danos não se restringem às mulheres. Um estudo da OMS revela que bebês nascidos de mães circuncidadas têm um risco até 55% maior de morrer imediatamente após o parto.


Parte da dificuldade para combater essa prática atroz nasce da constatação de que se está lidando com um ritual considerado divino por algumas populações – especialmente no Egito e em Uganda. A circuncisão feminina tem status de rito de passagem para a vida adulta e o casamento em vários países africanos, em alguns asiáticos e em porções do Oriente Médio. Muitas vezes, traves te-se de obrigação re ligiosa. O preceito seria baseado em interpretações do Corão, da Sharia (lei islâmica) e do Haddith (compilações de ditos do profeta Maomé, fundador da religião muçulmana), embora tenha sua origem em costumes tribais pré-islâmicos. Não há consenso sobre a base religiosa reivindicada pelos praticantes. Em 2007, o Conselho de Estudos Islâmicos, ligado à Universidade Al-Azhar, no Cairo, um dos grandes centros de teologia muçulmana do mundo, declarou oficialmente que o corte da genitália feminina é “danoso, não tem base alguma na lei islâmica e não deveria ser realizado”. Não há registros de que seja feito em países de lingual árabe do norte da África, com exceção do Egito – ali, estimativas de 2005 apontavam que quase 97% das mulheres entre 15 e 49 anos tinham sido submetidas à mutilação genital. Casos esporádicos em países da Europa e da América do Norte ocorrem no interior de comunidades de imigrantes, vindos dos países que adotam o costume. Não há notícia da prática no Brasil.


Sem prazer, sem marido, sem filho

Há três tipos de corte genital feitos para a circuncisão feminina. Na clitoridectomia, parte do clitóris é removida.
Na excisão ou extirpação, são retirados o clitoris e os pequenos lábios da vagina. O tipo mais cruel é a infibulação: após a retirada do clitóris e dos pequenos lábios, os grandes lábios da vagina são cortados ou raspados. Para a cicatrização, os dois lados da area lesionada são mantidos grudados por meio de pontos cirúrgicos ou amarrando-se as pernas da mulher. A cicatriz formada cobre os lábios e a maior parte do orifício vaginal, deixando apenas uma pequena abertura para a passagem da urina e do sangue menstrual. Essa prática produz um estreitamento da vagina que torna a penetração extremamente dolorosa, quando não impossível.

A infibulação também interfere no prazer sexual do homem por causa da dificuldade de penetração, e pode afetar a capacidade reprodutiva da mulher. Um estudo feito no Sudão mostrou que mulheres submetidas à infibulação têm duas vezes mais riscos de apresentar problemas de fertilidade. O mesmo estudo apontou uma taxa de divórcios duas vezes maior entre essas mulheres. O marido pede a separação movido por problemas tanto no relacionamento sexual quanto na capacidade de a mulher procriar. A triste ironia é que uma das justificativas para a prática é de que ela favorece a união conjugal e garante a fertilidade. Embora não existam dados precisos, acredita-se que 15% do total de circuncisões femininas sejam feitas por infibulação. Em países como a Somália e o Sudão, porém, cerca de 85% das mutilações genitais realizam-se por esse método.

Foi o que a enfermeira brasileira Kelly Cavalete Cardoso, 29 anos, presenciou em 2007, quando passou seis meses na Somália trabalhando para a organização Médicos Sem Fronteiras. “Na região onde atuei, todas as meninas são submetidas à circuncisão tipo III, que é a infibulação. Normalmente, ocorre entre os 5 e os 7 anos e é realizada em casa pela avó. Também existem mulheres especializadas em executar esse tipo de mutilação dentro da comunidade, e algumas famílias preferem recorrer a essas senhoras.” A enfermeira conta que os cortes eram realizados com tesoura ou faca e as suturas com agulhas de costura. “Em alguns casos, as vaginas se fecham de tal maneira que, após o casamento, o marido acaba abrindo o orifício vaginal com algum instrumento cortante para poder manter relações sexuais.” São histórias de horror que, para a população local, se repetem como mais um fato “natural” da vida, segundo os relatos ouvidos por Kelly.
“Dificilmente se questiona ou se comenta sobre a possibilidade de não fazer (a circuncisão). É algo realizado há muito tempo e as pessoas nem sequer compreendem o porquê, simplesmente o fazem. Há descontentamento por parte de algumas jovens, mas está longe de ser uma revolta”, avalia a enfermeira. Daí a importância de vozes como a da ex-modelo somali Waris Dirie, uma vítima que transformou a própria dor em causa. Aos 5 anos, Waris foi submetida à mutilação genital, supostamente para garantir um futuro casamento. Aos 13, prometida a um homem muito mais velho, fugiu para a Europa, onde foi descoberta por um olheiro e tornou-se modelo. A fama não apagou as marcas do passado: tornou-se embaixadora das Nações Unidas pelo fim do corte genital e escreveu um livro sobre a própria história, Flor do Deserto (Ed. Hedra), que acaba de virar filme (leia entrevista ao lado). Mas essa não é uma causa apenas dela. É preciso que seja uma luta de todas as mulheres.

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